Aqui, procuro contrapor o significado de mito e logos, e, de maneira um pouco mais profunda, discorrer sobre a diferença de ambos no sentido de relato de crenças (mitos) e relato de testemunhas (logos), a partir das explicações sobre a criação do mundo, abrangendo a questão da crença mítica grega e a fé no Logos divino cristão.
Ao procurar no dicionário, é possível encontrar a palavra mito relacionada a fantasia, delírio e até mentira, mas também consta, ainda que de maneira incompleta, um significado fundamental: narrativa de teor simbólico e verosimilhante. Eu complementaria que o mito teve e tem função fundamental na cultura de qualquer grupo de pessoas/povo. Digo isso, pois olhando para a historiografia e o estudo, por exemplo, de Lacan e Freud, evidencia-se que o homem é um animal simbólico. A natureza humana exige sentido e o mito e sua simbologia o ajudam a configurar sentido as coisas, sustentando e fundamentando a cultura.
O logos – em grego, palavra – significava na antiguidade a palavra escrita ou falada. Mas a partir de Heráclito passou a ter um sentido ampliado, no qual estaria ligado ao conceito filosófico traduzido como razão. Esse significado é ambivalente, pois se dirige a capacidade de racionalização de uma pessoa e também ao princípio cósmico da Ordem e da Beleza.
Na Idade Antiga, muitos mitos foram criados sobre deuses, heróis, titãs, ninfas, centauros, etc; naturalmente tornou-se amplamente difundido o conjunto desses mitos, nascendo assim a mitologia grega – de origem dórica e micênica. A Grécia Antiga tornou-se um lugar onde muitos deuses eram adorados, sendo caracterizada por politeísta. Apesar de não existir uma bíblia – como no caso dos cristãos – os registros vinham da Teogonia de Hesíodo, século VIII a.C, e também dos registros Homéricos, a Ilíada e a Odisseia. Com isso, tornou-se possível, através da mitologia, a fundamentação da cultura grega, onde explicava-se a formação do mundo e a sua regência.
Basicamente, uma das versões da história criada é a seguinte: no início, nada existia. Tudo era escuro e sem nada, isto era o Caos. Aos poucos a Mãe-Terra – ou Gaia – surgiu e criou o mundo. Ela teve um filho chamado Urano, que era o céu. Urano e Gaia tiveram filhos juntos. Com a chuva vieram as plantas e animais que se formavam das gotas que caíam nos oceanos e rios. Surgiram assim, também, monstros de muitos tamanhos e formas. Entre esses monstros haviam uns de apenas um olho, estes eram os Ciclopes. Urano foi mau para eles e baniu-os para o Submundo. Mais tarde começaram a aparecer seres com forma de humanos, mas enormes. Estes gigantes eram os Titãs e foram os primeiros deuses e deusas. Gaia não conseguia perdoar seu filho Urano pela maneira como tinha tratado os Ciclopes e encorajou os Titãs, liderado por Cronos, a se revoltarem. Eles atacaram e venceram Urano e assim ficaram no poder. Do sangue de Urano que caiu na Terra nasceram as Eríneas – espíritos de vingança e revolta, com cabeça de cão e assas de morcego. Outra gota caiu no mar e assim nasceu a deusa Afrodite. Cronos casou com a sua irmã, Réia, e tornou-se o rei dos Titãs. Tiveram cinco filhos, mas Cronos avisado que um deles o mataria engoliu-os todos assim que nasceram. Para salvar seu sexto filho, Réia enganou Cronos, dando-lhe uma pedra enrolada em um pano e escondeu a criança entre algumas deusas menores, as Ninfas, que criaram a criança em segurança. Essa criança era Zeus. Quando cresceu, Zeus regressou a casa disfarçado e colocou uma poção na bebida de Cronos, fazendo que ele morresse. As crianças engolidas, seus irmãos e irmãs, foram tossidas sãs e salvas, essas eram: Hestia, Demeter e os irmãos Pluto e Poseidon. Houve então uma grande batalha, Zeus libertou os Ciclopes, nos quais fizeram relâmpagos para ele arremessar.
Fizeram também um tridente para Poseidon e um capacete mágico para Pluto que o deixava invisível. A maior parte dos Titãs e Gigantes ficaram ao lado de Cronos. Depois de uma terrível luta, os deuses mais novos saíram com a vitória. Os Titãs foram banidos e um deles, chamado Atlas, teve como castigo segurar para sempre os Céus. Zeus se tornou senhor dos céus e rei de todos os deuses. Poseidon foi feito senhor dos oceanos e Pluto do submundo.
Como visto, os deuses não apenas possuíam forma humana, mas também seus sentimentos. Amor, raiva, inveja, traição proporcionaram muitas histórias gregas, inclusive dentro delas, deuses e humanos se relacionaram a tal ponto de terem filhos. A partir desse tipo de relação, nasce, por exemplo, o famoso herói Hércules.
No cristianismo, há uma forma, a princípio, também mitológica, na qual tem o objetivo de explicar a origem do mundo. O livro de Gênesis inicia-se da seguinte maneira:
“No princípio criou Deus o céu e a terra. E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas.” Gn 1, 1-2
A partir daí, relata-se a criação de tudo, inclusive do homem, e os nomes são dados aos seres. Dentro da perspectiva tratada – relato de crenças x relato de testemunhas – o livro de Gênesis, assim como a mitologia grega, se encaixa, até então, perfeitamente ao relato de crenças. Entretanto, esse quadro começa a mudar após a aparição - historiograficamente real - do fundador do Cristianismo, Jesus. Quando o Apóstolo João, um dos mais próximos amigos de Jesus, discorre em seus escritos que após um caloroso debate com alguns judeus, Jesus diz que esteve com Abraão – profeta que viveu aproximadamente 600 anos antes daquele mesmo ano – algo inesperado é revelado:
“Não tens ainda cinquenta anos e viste Abraão?! E Jesus responde: Em verdade, em verdade vos digo: antes que Abraão fosse, Eu Sou.” Jo 8, 57-58
Ao usar as palavras “Eu Sou” o fundador do Cristianismo não apenas declara que existia antes de Abraão, mas também usa o nome de Deus, registro do livro de Exôdo no capítulo 3, versículo 14 – Em Exôdo, Moises encontra Deus e ele lhe envia em missão, porém o personagem bíblico questiona a Deus sobre como deve responder caso lhe perguntem sobre o nome de Deus, então Deus responde que seu nome é: Eu Sou. Diante disso, entende-se que Jesus já era presente antes de Abraão, ou seja, ele estaria na eternidade e de algum modo seria o próprio Deus. Diante dessa revelação, entende-se finalmente o que o mesmo apóstolo, João, escreve no primeiro capítulo desse mesmo livro:
“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” João 1,1.
O termo grego “logos” significa no português: verbo. Por isso, o Verbo é o Logos Divino. Jesus é o Agente da criação (Sl 33,6), a Palavra, a mensagem de Deus para seu povo por intermédio dos profetas (Os 4,1).
Mas afinal, o que garante que as palavras de Jesus sejam verdadeiras?
O que lhe dá autoridade, historicamente, são os milagres. Os relatos das testemunhas não param em suas palavras, eles mostram a ação concreta daquele homem. São inúmeros os milagres na frente de muitas pessoas, isso, empiricamente falando, é o que dá veracidade as palavras de Jesus. As suas ações milagrosas corroboram suas palavras e suas palavras corroboram a Criação do mundo, na perspectiva judaico-cristã. O início do evangelho de Lucas diz:
“Muitos empreenderam compor uma história dos acontecimentos que se realizaram entre nós, como nos transmitiram aqueles que foram desde o princípio testemunhas oculares e que se tornaram ministros da palavra. Também a mim me pareceu bem, depois de haver diligentemente investigado tudo desde o princípio, escrevê-los para ti segundo a ordem, excelentíssimo Teófilo,” Lc 1,1-3
Diante disso, e também da historiografia moderna, sabe-se que não apenas os evangelhos conhecidos serviram para relatar os acontecimentos daquela época, mas também muitas outras cartas e textos. Assim como numa investigação policial, onde se cruza o relato de muitas testemunhas de um determinado crime e encontra – em meio a percepções diferentes – uma síntese verdadeira, deve-se, do mesmo modo, analisar todos esses textos e inferir o que já é amplamente difundido: o Cristianismo não é fundamentado em relatos de crenças, mas em relatos de testemunhas, ou seja, não se trata de algo como o mito grego, onde se manifesta apenas na literatura e no imaginário, mas sim do Logos Divino que se manifesta na história.
Por fim, o que difere, neste aspecto, o mito grego do Logos cristão é a personificação divinizada do Logos. Ou seja, é a encarnação do Verbo Criador que se confirma pelos seus inúmeros milagres. Enquanto a mitologia grega se preocupava em dar sentido ao mundo o Logos esclarece o que estava ainda obscuro. Aristóteles diz que a literatura é superior a história, pois a história diz o que ocorreu e a literatura o que poderia ocorrer. Entretanto, fora dessa visão pedagógica, percebe-se um fator determinante na história: sua capacidade de ser um fato e não uma estória. A veracidade do logos impõe-se na realidade e isso, aqui, é fundamental. A filosofia cristã, em sua metafísica, diz que a matéria não surge sozinha, ela precisa de um Ser, e neste caso, o Ser é Deus e Ele sempre existiu – e por isso, segundo o Filosofo, é o primeiro motor - e por isso não foi criado. Logo, se houve um big-bang ele surgiu da força de algo preexistente, ou seja, não pode ter passado a existir do nada, necessariamente houve um ser anterior. A fórmula inicial dessa criação continha todas as potências, todas as possibilidades, inclusive a consciência do processo de criação – no qual estamos tratando aqui – e essa forma inicial ou Ser Eterno é o Logos Divino.
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