Antero de Quental em seu discurso sobre as Causas da decadência dos povos peninsulares, aponta três causas da decadência portuguesa e espanhola a partir do século XVII: religião, política e economia. A partir desse olhar para a sociedade portuguesa, esse texto dialogará com Eduardo Lourenço, em sua obra Nós e a Europa ou as duas razões, no qual discorre sobre a importância de se ter um passado original, no qual garante a espessura do presente, e assim, consequentemente, abordará a questão central e problemática que se refere a identidade nacional.
Antero organiza sua exposição, basicamente, em três partes, onde, primeiramente, ele dá um respaldo histórico sobre os grandes feitos peninsulares, depois, aponta a decadência a partir do século XVII e, por fim, oferece uma solução. Durante os tempos áureos a nação produzira em seu seio: santos, teólogos, papas, reis, cavalheiros, etc. Eram, segundo o autor, símbolos vivos da alma popular. Estes, sustentavam o espírito peninsular, onde as produções filosóficas, poéticas e arquitetônicas eram abundantes. Durantes esses séculos, o português, em especial, era referência significativa diante de todo o mundo, acompanhando em tudo a Europa, até a excedê-la, sendo iniciador dos estudos geográficos e das grandes navegações. Esse movimento foi representado, segundo Antero, por uma geração de homens superiores, inspirados pelos seus espíritos livres e altos.
No princípio do século XVII, Portugal perde sua majestosa posição entre as nações. Segundo o autor, umas das causas seria a questão religiosa, onde o catolicismo é transformado pelo Concílio de Trento. Diante da Reforma Protestante, a Igreja se torna ainda mais rígida e impõe seus dogmas de maneira a controlar a liberdade individual das pessoas, que por sinal seria este um grande elemento da identidade nacional. Liberdade esta que abrange sentimentos peninsulares traduzidos por expressões como: consciência individual, pensamento próprio e espírito livre. A fim de combater a Reforma, além de intensificar sua doutrina através de pronunciamentos papais ex cathedra, ou seja, em matéria de fé e moral o Papa de maneira infalível faz pronunciamentos aos católicos, a Igreja funda a Companhia de Jesus, na qual possui um caráter missionário e pedagógico. A partir daí, o autor coloca seus diversos pontos desde a participação dos Jesuítas num evangelismo imposto até a guerra dos trinta anos. Afirma ele, que o Papa semeia a discórdia entre cidades e príncipes sempre que tentam se reconciliar e por isso—pela guerra, corrupção e aprisionamento religiosos—o instinto popular adormeceu por toda a parte: na arte, na literatura, na religião. Na arte, há a degradação da poesia, onde o cômico ganha força junto ao conteúdo de intrigas e vícios da vida ordinária. Quanto a verdade humana ela deixa de ser importante para a população. Segundo o autor, a morte moral não se restringia ao sentimento, a imaginação, mas afetava também a inteligência. Os santos perderam seu caráter simples e ingênuo, os sermonários e livros de devoção aderiam a ideias nulas e baixas, a arquitetura decaía e a política era igualmente afetada: não se buscava mais o interesse do povo, mas sim o da Igreja. Em suma, o autor concluí que o catolicismo – pela sua disciplina e política – era verdadeiramente túmulo das nações e, previamente, do sentimento cristão, da vida moral.
A segunda causa, a centralização política realizada pela monarquia absoluta, reflete na vida política e social. Na Idade Média, os reis não eram absolutos, uma vez que a vida política local era forte e vigilante. De um lado, se tinha os privilégios da nobreza e do clero, do outro, as instituições populares, o que equilibrava o peso da coroa. Com a ruína das instituições locais, diante da influência inglesa, perde-se a participação política—o peso popular que trazia equilíbrio diante da coroa—e assim se perde a liberdade. A centralização monárquica abafou todas as vozes e corrompeu a coroa. Os reis foram tomados pelos vícios, embriagados pelo orgulho e pela vaidade. Sem força, a população foi entregue ao acaso. A nobreza governava para a nobreza, uma aristocracia grande e lenta. Em consequência da falta de força popular, o autor cita que o carro-chefe futuro, a burguesia, foi sufocada e com isso a nação entra em decadência.
A terceira e última causa do autor, reflexo também da segunda, se caracteriza quando a produção decresce, a agricultura recua, estagna-se o comércio, as indústrias nacionais enfraquecem, a riqueza se concentra na mão de poucos, tendo assim, uma população enfraquecida diante da guerra, da emigração e da miséria. Toda essa realidade se corrobora com o sistema econômico realizado pelos descobrimentos. Sem a devida aplicação das riquezas, o capital adquirido seja pelo comércio quanto pela guerra não se sustenta, o proprietário de terra, o agricultor viram soldados, navegantes e a população rural muda para os centros em busca das riquezas. Nada mais se fabrica, tudo se importa. As riquezas do agora cegam os olhares para o futuro, o desenvolvimento, a aplicação, a multiplicação. O país se torna dependente dos estrangeiros e a decadência, segundo o autor, é evidenciada.
Diante dessa realidade, Antero de Quental propõe aos seus ouvintes um olhar para o futuro, a adesão ao espírito moderno, a ruptura com o passado e com o catolicismo, por uma alma nova, consciência livre e a contemplação do divino pelo humano, diretamente. De maneira muito enfática oferece a Revolução aos peninsulares, de forma cândida vislumbra uma forma de viver mais niveladora, solidária e equitativa, o que chama de futuro, o novo mundo industrial do socialismo.
Conferindo toda essa exposição, é possível observar que durante todo esse percurso – exaltação do passado, decadência e a esperança de uma retomada – o autor evidencia seu questionamento sobre o que era a Península Ibérica e o que ele se tornou. Logo, percebe-se que sua indignação está intimamente ligada a ideia de identidade nacional e sua expressão. Diante disso, cabe, de maneira bastante conveniente, trazer aqui a reflexão do autor Eduardo de Lourenço, em sua obra Nós e a Europa ou as duas razões, na qual ele discorre sobre essas duas questões, e de maneira bastante específica trata da realidade portuguesa. Portugal, segundo ele, possui larga memória sobre seus feitos, possui definição política, territorial e cultural de muitos séculos, e por isso não possui um problema de identidade, mas sim de hiperidentidade, de quase doentia fixação em se comparar com o resto do mundo. Com isso, sob o olhar de Eduardo Lourenço, é possível entender que a indignação de Antero é com a hiperidentidade, ou imagem, na qual os portugueses, inclusive o próprio Antero, tem sobre si mesmos. Antero expõe uma insatisfação referente a pouca força portuguesa no mundo, basicamente no sentido político e cultural, e com isso revela se importar com o olhar do mundo sobre Portugal. Para Eduardo Lourenço, esse movimento de expressão portuguesa na história parece ser natural, em especial quando diz: “Talvez todos os povos existam em função de certo momento solar que confere sentido e euforiza magicamente a memória do que são.” (LOURENÇO, 1988, p.10). Mas também não deixa de admitir o momento doloroso, de um presente sem futuro, onde o pessimismo reinara sobre as expressões da identidade. Expressões essas desalentadas e desacreditadas, sem força, tentando sobreviver. Passando por um momento de esperança e sendo novamente rebaixado, o português adquire, talvez mais do que todos os povos, uma maturidade elevada, na qual culmina numa autoavaliação que os dá variados benefícios dentro da “guerra dos tronos”.
Em suma, considerando as causas da decadência, sob a perspectiva de Eduardo Lourenço, e, ao mesmo tempo em consonância com o início do discurso de Antero, aspirando a uma emenda definitiva, é exposto aqui um ligeiro pensamento, no qual acredita que o laudo de abatimento e insignificância—gerado pela decadência moral, política e religiosa – não apaga a autoconsciência nacional, pelo contrário, a particularidade histórica portuguesa forma um corpo resistente, integra espessura ao presente, possibilitando a passagem pelo deserto. A ruptura com o catolicismo, o fortalecimento das entidades locais e o socialismo industrial talvez representem algum tipo de solução, mas o movimento primeiro deve ser o que Eduardo Lourenço chama de: saber. Assim como para se emendar uma corda basta fortalecer os seus laços, a força portuguesa deve ser retomada através dos seus valores primeiros. Para isso, não é necessário a ruptura, mas a vontade de corrigir, como um ímpeto desinteressado pela verdade.
O momento solar de Portugal deu a ele um fundamento para sua existência e uma responsabilidade de navegar pelo mundo de maneira a mostrar sua sabedoria, sabedoria esta que deve evitar o náufrago frente o sentimento de realidade e entendimento da complexidade do mundo adquiridos. Portugal, hoje amadurecido, não se sente o centro do mundo, mas sente ainda pulsante o seu espírito livre, sua memória vitoriosa, sua simbologia transcendental e sua identidade à se expressar.
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