Quando Frei Henrique de Coimbra ergue o cálice no Novo Mundo, ele, não apenas preside a primeira celebração eucarística naquele território, mas, simbolicamente, mostra-se o Cristo iluminando o que estava nas trevas. Dentro do entendimento católico, a terra, até então desconhecida e que não recebera a mensagem salvadora de Cristo, tem a oportunidade de conhecer e aderir a ela. As trevas citadas, não se referem a algum tipo de inferioridade cultural, pelo contrário, a partir da cultura daquele povo, o cristianismo apresentaria a mensagem iluminadora e salvadora de Jesus.
“Por si mesmas (as culturas), estão ordenadas ao encontro e à fecundação mútua. E porque a íntima abertura do ser humano para Deus põe nelas o seu cunho, tanto mais quanto maiores e mais puras são, por isso mesmo nelas está inscrita uma intrínseca aptidão para a revelação divina” (RATZINGER, 2004, p.178).
Uma vez que, ao contrário do que a corrente pós moderna segue – o entendimento de uma religião nascida de uma cultura que visa tornar possível a convivência humana - a religião cristã se dá a parte da cultura, porém a abrange, e é revelada com um fim universal. A obra de Victor Meirelles mostra que apesar da simbólica cristã está exposta a todos – europeus e nativos – a identidade cultural destes últimos está preservada, da indumentária, ou ausência dela, até suas retratações corporais. Enquanto o europeu se prostra piedosamente – deixando de lado as armas e outros objetos particulares - diante desse momento sagrado, onde, segundo a fé cristã, a igreja celeste se une a igreja terrestre, os indígenas estão dispersos, deitados e assustados.
Ainda na figura central, abaixo da cruz de madeira e diante do altar está Frei Henrique, paramentado com a casula branca e dourada. Atrás dele há um frei servindo de coroinha, segurando a veste para que ela não toque no chão. Os dois são o centro da questão toda, inclusive na tela há uma iluminação maior neles, ressaltando, mais uma vez, a questão da luz cristã, dessas vez através do sacerdote na pessoa de Jesus. Segundo a fé católica, o sacerdote ao celebrar a Santa Missa está “in persona christi”, ou seja, na pessoa do próprio Cristo. Quando eleva o cálice e pronuncia as palavras “Tomai e bebei: isto é o meu sangue, o sangue da nova aliança, que é derramado por muitos para o perdão dos pecados.” (cf. Mt 26,26-27; 1Cor 11,23-24), o sacerdote diz em primeira pessoa, ou seja, é o próprio Cristo dizendo. Nesse momento, Frei Henrique está com os olhos fixos no cálice e os cristãos ajoelhados reverenciando aquilo que deixara de ser vinho para ser o sangue da nova união, da nova chance que Deus dá todos os dias aos homens. O franciscano coroinha ajuda o celebrante segurando sua veste e ao mesmo tempo abaixa a cabeça, pois está diante de algo tão sublime que nem mesmo ele – que humanamente está numa posição de destaque – tem alguma importância.
Particularmente, com um exercício imaginativo, me coloco longe da visão do quadro, com fome, cansado, perdido no meio da floresta, e, ao fracassar em achar uma saída para o mar, entro em completo desespero e saio correndo pela mata. Começo a ver diversos animais perigosos, vegetais estranhos e me percebo numa mata sufocante e de proporções bizarras, o fôlego vai acabando, o desespero aumentando e quando já não aguento mais, paro de correr, dou alguns passos cambaleantes, respiro fundo querendo chorar, abro as últimas folhagens que ainda consigo ver e de repente: estou diante da primeira missa no Brasil.
Toda a tela parece construída para que os olhares se voltem sempre para a elevação do cálice. É como se a tela forçasse a gente a sempre ter esperança. É o momento de refrigério, onde mais uma vez Cristo é elevado, o Sumo Bem é escolhido, mesmo num mundo tão perverso. O olhar do observador da tela – o nosso olhar – vem de uma região escura do quadro, sem luz, onde parece que estamos presos na mata. Entretanto, quando, finalmente, encontramos uma saída, somos surpreendidos por um momento ápice de silêncio, contemplação e ar fresco. No final das contas, e de maneira bastante romantizada, eu admito, todos nós queremos ver uma saída da mata densa e escura da nossa vida, todos nós queremos ser esse observador que encontra luz em meio a escuridão.
Comentários
Postar um comentário