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Diário de um Soldado




Eu estava sem consciência. E sem a consciência do que estava acontecendo, eu não sabia onde estar, não sabia para onde ir, não sabia como agir. Era tudo tão nublado que até o óbvio estava difícil de ser assimilado. Porém percebi finalmente no decorrer das últimas batalhas uma realidade drástica: eu estava em guerra. Ao ir amadurecendo no campo de batalha, depois de uma longa jornada descolada do mundo real, pus, possivelmente pela primeira vez, os dois pés no chão. Percebi então o quão era doloroso estar com os pés nesse chão. Nele havia muito sofrimento. Entendi finalmente o porquê de tantas vezes eu mergulhar no mar das ilusões da guerra. Eram ilusões de alívio, ilusões de prazer, ilusões de paz. Válvulas de um falso escape. E então uma pergunta surgiu: como eu posso suportar uma realidade tão dolorosa? Sem uma resposta imediata, concluí que era mais fácil continuar fugindo. Porém, através desse percurso de amadurecimento de guerra e muita ajuda da tropa, eu decidi encarar o problema de frente. Decidi permanecer nesse chão duro, porém real. Escolhi estar com os pés fixados nessa realidade onde havia tanta deserção, injustiça e dor. Mas por que querer ficar em um lugar tão ruim? A resposta que me dei foi: somente na realidade do chão da guerra, e não num mundo fantasioso, vou cumprir a missão e quem sabe construir coisas que valham a pena de verdade. E isso, mais para frente, se mostrou verdadeiro. Uma nova pergunta apareceu: como construir algo num lugar tão destrutivo? Ou melhor: como construir algo no meio de uma guerra? E uma pista sobre a resposta apareceu: talvez um bom caminho seja conhecendo a natureza dessa guerra. Entrei, então, num longo caminho de pensamentos e reflexões que não daria para expor aqui, mas algumas perguntas sobre isso começaram a aparecer: que tipo de guerra absurda é essa que estou vivendo? Essa guerra é da mesma “espécie” das guerras vividas no século passado? Bom, o tipo de guerra eu não sabia bem, mas entendia naquele momento que não era da mesma “espécie” das guerras mundiais. Apesar de terem semelhanças relevantes, se tratavam de guerras diferentes. Mas o que tem de diferente? E me dei a seguinte resposta: muitas coisas, mas principalmente seus objetivos. Lembrei então que na guerra passada os objetivos últimos e centrais eram conquistar riquezas, dominar territórios, impor poderes, etc. Na guerra em que eu estava o objetivo era diferente. Apesar de muitos assumirem como objetivos os mesmos das antigas guerras, esses objetivos culminavam sempre em um vazio lancinante. Então entendi que não os objetivos melhores a se buscar. Ao observar a vida dos soldados, percebi que suas conquistas não geravam satisfações reais. Os guerrilheiros tinham objetivos que, quando alcançados, não os preenchiam como esperavam, estavam sempre insatisfeitos, o que corroborava minha tese. Era duro demais ver aquilo. Afinal, pessoas estavam abdicando de sua vida numa guerra onde quando ganhavam, descobriam que haviam perdido – e as vezes nem descobriam. Uma tragédia. Mas, então, eu me perguntei: quais são os objetivos desta guerra? Já estava claro que não tinha a ver com conquista de riquezas, domínio de territórios, imposição de poderes, etc. Então quais eram? Ao olhar novamente para o exército, percebi que alguns soldados eram mais felizes do que outros. Isso me fez olhá-los com mais atenção. Percebi que os soldados mais felizes eram os que se equipavam com uma arma antiga, mas pouco utilizada: o amor. No meio daquela guerra, alguns escolhiam, em vez de destruir uns aos outros, construir boas relações entre eles e os outros. Não estávamos numa guerra entre países, estávamos nas empresas que trabalhávamos, nas instituições de ensino, nas igrejas, nas ruas, nos bares e até nos nossos lares. A maioria incorria em fogo amigo, ou seja, irmãos atacavam irmãos, amigos atacavam amigos, aliados atacavam aliados. A guerra que deveríamos travar contra nós mesmos, estava sendo travada contra os outros. Em vez de olharmos para dentro, olhávamos para fora. Olhei novamente para os soldados mais felizes, eles estavam perdoando uns aos outros, estavam consolando os combatentes a sua volta, estavam servindo principalmente os recrutas que passavam pela sua frente. Foi então que tomei a decisão mais importante da minha vida. Sem medo nenhum, eu decidi imitá-los. Foi a decisão central para tudo mudar. A guerra, apesar de dolorosa, tinha agora todo sentido. Aquele amor bélico me fez enxergar aonde eu estava, para onde eu deveria ir e como deveria agir. Eu estive sem consciência durante muito tempo, mas hoje eu consigo amar.


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